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sexta-feira, 23 de maio de 2008

GUERREIROS DO SENHOR


Um esboço da cosmologia neopentecostal
É notável a perplexidade provocada pelos grupos neopentecostais. As tentativas de explicação, na academia ou na imprensa, muitas vezes têm partido de lugares comuns como ignorância, miséria e desesperança da parte do povo, e eficientes estratégias de marketing, comunicação e gerenciamento empresarial por parte destas igrejas. As ciências sociais e a mídia revelam aqui a dificuldade que nossa sociedade moderna encontra para lidar com a dimensão propriamente religiosa dos fenômenos religiosos. A abordagem dos efeitos políticos ou econômicos das crenças e práticas religiosas ocupa mais espaço que a compreensão das articulações entre tais crenças e práticas numa cosmologia religiosa. No caso das igrejas neopentecostais, em especial, as práticas rituais bem como o comportamento e as atitudes públicas de pastores e organizações eclesiásticas parecem destituídos de sentido ou resultantes de mera "esperteza" e má-fé, quando não são situados em relação a sua visão religiosa de mundo. Quando, porém, inserimos tais práticas, comportamentos e atitudes no quadro de referência da cosmologia neopentecostal, elas passam a fazer sentido. Obviamente seria uma ingenuidade não perceber as implicações culturais, políticas e econômicas do neopentecostalismo. No entanto, tal percepção exige uma investigação prévia: é preciso ouvir com atenção o que crêem e pregam estes crentes, antes de nos apressarmos em avaliar seu impacto social. Proponho-me aqui a descrever sinteticamente a cosmologia neopentecostal, principalmente naquilo em que ela se diferencia da protestante e pentecostal em geral. Ao tomar as diferenças, porém, não pretendo me esquecer que o neopentecostalismo é ao mesmo tempo cristão, evangélico e pentecostal. Uma das maiores dificuldades que estas igrejas apresentam para nossa sociedade está justamente no fato de que as continuidades falam tão alto quanto as rupturas: boa parte de sua pregação e de suas práticas pode ser encontrada também nos mesmos lugares de onde partem as críticas que lhes são feitas. Uma Quarta Pessoa Para indicar os traços característicos do neopentecostalismo desejo recorrer a uma classificação, proposta pelo prof. Rubem César Fernandes, que usa a Trindade como critério. Fernandes distingue três "ondas" da Reforma em função da ênfase que dão a cada pessoa da Trindade: a primeira, ligada aos movimentos de Lutero e Calvino, colocaria sua ênfase no Deus Pai. A segunda, relacionada aos nomes de Spener e Wesley e aos movimentos de avivamento, enfatizaria a pessoa do Filho. A terceira, a pentecostal, destacaria a figura do Espírito Santo. Como se trata de ênfase, a crença na Trindade é comum a todos. Um destaque maior é dado porém a uma pessoa em relação às outras. Torna-se difícil encaixar num esquema triádico um fenômeno que, a meu ver, já se desdobra em quatro. Portanto, sem querer com isto incorrer numa heresia, proponho acrescentar a esta curiosa classificação trinitária uma quarta figura que, mesmo não sendo uma pessoa da Trindade, e mesmo não sendo reconhecida entre os cristãos como divina, representa uma ênfase distintiva do neopentecostalismo: o Diabo. De um modo bastante incômodo para os demais protestantes, o Diabo é referência constante no discurso, no ritual e na cosmologia neopentecostal. Observe-se que, como no modelo proposto por Fernandes, é tudo uma questão de ênfase. A crença no Diabo e em sua ação maligna é comum a todo o protestantismo - e ao cristianismo em geral. Mas no neopentecostalismo ela alcança o status de um fundamento teórico-teológico. O Núcleo da Cosmologia Neopentecostal: A "Guerra Espiritual" No cristianismo o Diabo é o inimigo de Deus. Inferior a este, é na verdade um "anjo decaído", isto é, um ser que deveria ser subordinado a Deus, mas que se rebelou contra Ele. Ainda de acordo com a crença cristã, o Diabo tentou atrapalhar os planos divinos, causando sofrimento ao gênero humano. E hoje ele ainda está "à solta", agindo com a mesma finalidade. Protestantes em geral estarão de acordo com estas idéias. A diferença neopentecostal está na ênfase dada ao Diabo e seus demônios e que se revela mais claramente no conceito de "Guerra Espiritual". A "Guerra" representa uma agudização do conflito entre Deus e o Diabo. Como parte de uma escatologia igualmente aceita por protestantes históricos e pentecostais tradicionais, ela se liga à idéia de que vivemos os "últimos dias" da História. A cada dia se aproxima a Batalha Final em que o Diabo será definitivamente vencido. Sentindo a iminência da derrota, Satanás tenta, de todas as maneiras, reverter a situação. Sua ação é desesperada e, por isto mesmo, incessante, intensa, audaciosa. O Diabo não está apenas solto; ele está fazendo um derradeiro "esforço concentrado". E isto exige da parte do ser humano vigilância redobrada. Observe-se que a idéia mesma de "guerra espiritual contra o diabo" não está ausente do repertório protestante ou pentecostal tradicional, nem mesmo do cristão em geral. Há referências a ela, já no Novo Testamento, e as Cruzadas se nutriram desta inspiração. Em "Castelo Forte" , hino composto no contexto das disputas religiosas do início da Reforma, Lutero chama a atenção para ela e o mesmo clima belicoso é sentido em muitos dos hinos cantados pelos primeiros protestantes no Brasil . Aos olhos dos demais protestantes, afirmar a "guerra" não seria propriamente uma heresia. O problema estaria na sua radicalização como centro de preocupação da Igreja. Uma Religiosidade Agressiva É freqüente a associação entre pentecostalismo e fuga da realidade. Uma das explicações para o seu forte apelo popular estaria em oferecer às camadas menos favorecidas da população um escape dos sofrimentos a que são submetidas. Além disto, para alguns autores o pentecostalismo serviria ao ajustamento e submissão dos mais pobres. No entanto, no caso do neopentecostalismo, É difícil falar em acomodação. A "guerra espiritual" confere um senso de urgência que transforma a maneira como a religiosidade é vivida. A omissão É vista como uma maneira de colaborar com Satanás. Igualmente o desviar a atenção para outras preocupações que não a luta. Por isso o neopentecostal critica a apatia dos protestantes históricos e o moralismo dos pentecostais tradicionais. Eles estão ajudando o Diabo, não fazendo nada diante da ação maligna ou perdendo um precioso tempo com usos e costumes. Quem quer que seja capaz de perceber a urgência do momento presente - e o neopentecostal se imagina capaz disto - só pode desenvolver uma atitude: a de entrar na luta, alistando-se como mais um soldado do Senhor dos Exércitos. Não há lugar aqui para quietismo e acomodação. Pelo contrário, sua crença os leva a buscar intensamente a saúde e a prosperidade. São, aliás, bastante críticos com relação aos que dizem que a doença ou a pobreza são da "vontade de Deus". É o Diabo e não Deus quem promove o sofrimento. Conformar-se É submeter-se ao Diabo. Quem deseja apenas fugir das angústias da vida, viver pacificamente sua fÉ, aguardando o momento de partir, pela morte ou pelo "arrebatamento", não pode ser contado entre estes "guerreiros do Senhor". Esta é uma característica marcante dos neopentecostais: seu atrevimento, sua intrepidez, sua agressividade. Estão em meio a uma guerra e sabem que estão do lado vencedor. Seguem à risca o lema: "a melhor defesa é o ataque". É assim que enfrentam o Diabo: desafiando, provocando, chamando para a briga. Qualquer demonstração de fraqueza ou dúvida diante do Inimigo abre uma brecha perigosa. Portanto, devem ser ousados, agindo "com autoridade". "A terra, Deus a deu aos filhos dos homens" Entre os neopentecostais encontramos não apenas o dualismo "Deus X Diabo". Acreditam também que o universo está dividido em dois reinos: o reino espiritual e o reino material. O reino espiritual é habitado por seres espirituais: Deus, o Diabo, anjos e demônios, em luta constante. O reino material é este nosso mundo, habitado pelos homens e pelo restante da criação divina. É o campo de batalha da "guerra espiritual". É pelo seu domínio que se trava a guerra. E mais: "o reino espiritual É mais real que o material", dizem eles. O que ocorre neste mundo em que vivemos É reflexo dos acontecimentos da ordem espiritual. A doença no corpo ou na mente humana, a misÉria, os conflitos do relacionamento humano são efeitos de eventos do reino espiritual. Revelando uma perspectiva bastante humanista, os neopentecostais introduzem nesta cosmologia um detalhe fundamental. "A terra, Deus a deu aos filhos dos homens", repetem eles o versículo 16 do Salmo 115. Entendem assim, que só a ação humana é eficaz no mundo material. Deus - e o Diabo também - só age no mundo por intermédio do homem. O homem faz a ligação entre os dois reinos. Está no mundo material, mas sua esfera de ação não se restringe a ele. É que no homem encontram-se as duas dimensões. Ser material, possui tambÉm dimensão espiritual. Age no mundo como que conectado a uma orientação espiritual. A posição ocupada pelo homem É, portanto, decisiva na "guerra". Quanto maior o controle sobre o homem, maior o domínio sobre a terra. A "guerra espiritual" pode, então, ser resumida à luta entre Deus e o Diabo pelo controle dos seres humanos. Mas, talvez a caracterização de uma luta bipolar seja um tanto inexata. O papel do homem no conflito está longe de ser o de um passivo joguete nas mãos dos seres espirituais. Dotado de vontade própria, de livre arbítrio, é o homem quem decide, no fim das contas, sob o controle de quem deseja permanecer. Nem sempre a escolha é consciente. E, como "o mundo jaz no maligno", a inclinação natural do homem está orientada para a direção satânica. Assim, mesmo sem o saber, milhões de seres humanos servem aos propósitos do Demônio. Outros, conscientemente optaram por ele. Em qualquer caso, o resultado desta sujeição a Satã é sofrimento: doença, miséria, angústia, dor. O mal é causado pelo Diabo. Temos, então, de um lado o Diabo, literalmente infernizando a vida humana; de outro, Deus, libertando os homens das ciladas do Maligno. E, no meio, o homem, facilitando a ação de um ou dificultando a do outro, desenvolvendo atitudes e tomando decisões que desequilibram a luta para um ou outro lado. Trata-se, na verdade, de uma luta entre Deus, o Homem e o Diabo. O homem, já se disse, é caracterizado por seu livre-arbítrio. Mas o direito de escolha é exercido dentro de estreitos limites. Quem rejeita a oferta de salvação divina, alia-se, com esta decisão, ao Diabo, contra Deus. Quem aceita a salvação, alia-se a Deus, contra o Diabo. O dualismo da "guerra espiritual" não admite uma terceira via. Deste modo, temos 3 conjuntos (Deus e seus anjos / o Diabo e seus demônios / os seres humanos) alinhados em 2 posições (Deus e seus anjos + os homens que a Ele se associam) X (Satanás e seus demônios + os homens que a ele se aliam). Graficamente, teríamos: É portanto entre os homens que a partida é jogada. O homem é o fiel da balança: sua aproximação para um ou outro lado define a "guerra". "Há poder em suas palavras". Quando mergulhamos um pouco mais na cosmologia neopentecostal percebemos o papel fundamental reservado à linguagem. Ela é o instrumento através do qual se faz a ligação entre os dois reinos. A palavra humana, associada à fé, "cria realidades", isto é, faz acontecer coisas neste mundo. A fé é aqui entendida como uma espécie de "vontade sincera". A combinação de fé e palavra ativa forças do reino espiritual, fazendo com que o desejo expresso se realize. Esta premissa dá sentido a dois atos rituais característicos dos pentecostais clássicos, e dominantes entre os neopentecostais: a Oração e a Libertação. Na oração neopentecostal temos o encontro entre Palavra e Fé. Falando ao seu Deus o neopentecostal acredita que está mudando a realidade. Algumas expressões-chave utilizadas na oração reafirmam a crença no "poder mágico das palavras". Por exemplo, freqüentemente ouve-se o verbo "declarar" nas orações neopentecostais. "Declaramos este lugar santo"; "declaro vitória sobre estas vidas". Para eles estas são expressões "performativas", no sentido austiniano do term. Ao declarar santo o local, eles estão efetivamente tornando-o santo. Ao declarar vitória, acreditam estar vencendo o mal. Mas, do mesmo modo que se "declara vitória", é possível também "declarar derrota". As forças do reino espiritual são ativadas pela linguagem, sejam forças divinas ou forças diabólicas. O bom desejo associado à vontade sincera ativa forças divinas; o desejo mau, associado à vontade sincera de que ele se realize, ativa as forças demoníacas. "Há poder em suas palavras", diz o título de um livreto de grande circulação no meio neopentecostal. Por isso é preciso ter muito cuidado com o que se diz. Um pai, que num momento de irritação, "declara derrota" sobre seu filho, dizendo "este menino não presta mesmo: vai ser um marginal", está na verdade convocando as forças do mal para a concretização deste mau desejo. O enfermo que diz que sua cura é impossível está reforçando a ação do demônio causador da doença. A esposa que afirma que seu casamento não tem mais jeito está chamando os demônios para separá-la de seu marido. A comunicação com o reino espiritual, divino ou demoníaco, se faz através da linguagem. Este mesmo pressuposto embasa a "libertação", nome dado pelos pentecostais em geral ao ato de exorcismo. Pessoas que se aliam ao Diabo são por ele possuídas, escravizadas. A expulsão do demônio liberta o possesso. A prática é relativamente comum no pentecostalismo. No neopentecostalismo, dada a centralidade da "guerra espiritual" contra o Diabo, a libertação é mais freqüente e assume outras formas. Para com Deus e seus anjos, a palavra deve ser associada à fé. Diante do Diabo e seus demônios deve-se falar com autoridade, "repreendendo-os em nome de Jesus". A repreensão de espíritos, atitude bastante reveladora da "cosmologia" da espécie de pentecostalismo em questão, pode ser vista como um tipo específico de oração. Trata-se de palavras dirigidas ao diabo ou aos seus demônios com o objetivo de exorcizá-los. Mas o crente que assim o faz não conversa com o demônio. Ele lhe dá ordens. E age assim porque crê estar investido da autoridade e do poder de Deus, conferidos pelo uso do nome de Jesus. Ele se torna, então, um instrumento de Deus que, por seus lábios ordena a saída dos enviados de Satanás. Como na oração é a declaração, na forma imperativa, que "performativamente" faz acontecer a libertação. O demônio é expulso quando se diz "Sai!". A comunicação com o reino espiritual é feita por meio da palavra falada. As forças do Bem ou do Mal são mobilizadas ou desmobilizadas pela palavra humana. A força das idéias religiosas Num primeiro momento é natural que os aspectos mais exóticos sejam os que mais chamem a atenção. Quando, porém, nos aproximamos um pouco mais, vamos perceber que eles fazem parte de uma visão de mundo coerente que lhes dá sentido. O combate a outros grupos religiosos, como os afro-brasileiros, o catolicismo e a “new age” é parte da guerra espiritual contra o Diabo. O exorcismo, a libertação das garras de Satanás, é o modo que estes crentes encontraram para lutar contra as enfermidades, a miséria e os conflitos no lar. A oferta é uma demonstração de fé, mas também uma forma de colocar o dinheiro nas mãos de Deus e desviá-lo das mãos do Diabo. A ocupação de espaços na mídia, na política e na filantropia são parte de uma estratégia de guerra, visando a redução da área de influência e ação de Satã. Estamos, portanto, diante de fortes motivações religiosas que dão impulso à ação destas igrejas. O que há de mais poderoso nas igrejas neopentecostais parece ser não uma questão de marketing ou política, mas justamente o enorme potencial mobilizador que esta cosmologia religiosa guerreira apresenta.

Por: Rev. Wilson Azevêdo Antropólogo,
Professor da Faculdade Batista Carioca de Filosofia

Artigo extraído de: http://www.ipbguacui.org.br/

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