O fundamentalismo quer uma espécie de "volta" ao pensamento tradicional da Reforma, mas os reformadores não foram em nada "literalistas" na interpretação da Escritura, como o são os fundamentalistas.
Basta destacar a reserva que tinha Lutero com alguns livros da Bíblia, como, por exemplo, Tiago, Hebreus e o Apocalipse: para Lutero havia uma chave hermenêutica de interpretação da Bíblia, que era o "Cristo da justificação pela fé". Quando algo, em algum texto bíblico, lhe parecia contrário a este ponto, ele o tratava de modo "crítico".
Calvino, por sua vez, tinha como chave hermenêutica a questão da "soberania de Deus" e, de igual modo, fez a sua leitura da Bíblia partindo deste princípio e coordenando textos à luz disso.
Vê-se, pois, que os reformadores foram na verdade proto-críticos da Bíblia (visto que o criticismo bíblico só surgiu no Séc. XVIII), lançando, assim, as bases principais da chamada crítica bíblica.
O fundamentalismo só pode ser entendido no seu embate em relação ao liberalismo. Ele é reação no final do Séc. XIX, ao liberalismo desenvolvido nos Séc. XVIII e XIX.
Na base deste conflito estão dois modos de ler a realidade e seus métodos: o empirismo, com seu método indutivo e o racionalismo idealista com o seu método dedutivo.
Para o idealismo o homem não é uma tábula rasa, mas já tem, em si, antes de qualquer experiências, idéias natas que o ajudam a conhecer a realidade. Razão por que o conhecimento, no idealismo, é um conhecimento da realidade mediado, ou seja, antes vêm as idéias e, depois, o conhecimento da realidade.
O empirismo vê o homem como uma tábua rasa, sem qualquer verdade nata que o habilite ao conhecimento da realidade. Razão por que entendem que o conhecimento depende da experiência: se a realidade não passar pelos sentidos.
Na filosofia clássica moderna destacam-se Francis Bacon (inglês) como empirista e René Descarte (francês) como idealista. Descartes deduziu a sua existência de seu pensar, no famoso axioma: "Penso, logo existo". Bacon, por outro lado, dizia que todo conhecimento se baseia na observação e, desta experiência, induz-se a verdade.
David Hume (escocês), empirista, muito contribui para a doutrina do senso comum. Criticando Descarte (e o método cartesiano, ou seja, o dedutivo) desprezou como tola ilusão o método dedutivo de causa e efeito (ou a chamada "noção de causalidade").
Seguindo Hume, Thomas Reid fundamentou a teoria do senso comum: todos podemos experimentar, todos podemos observar e, por isso, todos podemos chegar às mesmas conclusões, visto que não há idéias prévias mas, somente, os fatos em si que só podem expressar uma única verdade. O conhecimento está ao alcance de qualquer pessoa, visto que não depende de nenhuma outra mediação (seja filosófica, seja científica ,ou mesmo de idéias inatas): basta observar e deduzir.
Em suma: a realidade é diretamente acessível e sua compreensão não depende de mediação qualquer. Conclusão:
• a verdade é universal, o que significa: ela é a mesma em todo lugar e em qualquer época, visto que é imutável e não adaptável às circunstâncias;
• a linguagem expressa o real: se a verdade é única e universal, pode ser expressa em qualquer tempo e lugar, ora, como a expressão e a transmissão da verdade se faz pela linguagem, esta não depende de interpretações, pois é a fiel transmissão da realidade;
• a memória pode registrar objetivamente o passado: ora, se a verdade é universal, se pode ser transmitida fielmente, pode, também, ser armazenada de modo inalterado.
Aplicando-se estes princípios à teologia, chega-se à conclusão de que não existem fatores capazes de alterar a compreensão de algo (sejam sociais, econômicos, políticos, culturais, étnicos, psicológicos). A verdade é única, universal e imutável. Não se deve levar em consideração as questões quer da teoria da comunicação, quer da filosofia da linguagem: a verdade é universal e a linguagem (o texto) a transmite corretamente. Por outro lado, o interlocutor pode receber esta mensagem de modo claro e sem necessidade de mediações. Cabe pois, acolher o relato, que, por usa vez, foi acolhido pelos seus transmissores, e, como eles, devemos armazenar e transmitir.
Veremos, neste ponto, a relação entre a filosofia do senso comum e o conceito de "inerrância bíblica" do fundamentalismo.
Tanto em Lutero como em Calvino a volta a Bíblia significou a redescoberta da palavra que Deus dirige à humanidade através dos patriarcas, profetas e, sobretudo, Jesus Cristo. O que estava em questão não era, por isso, a "letra" (gramata - termo usado por Paulo: " a 'gramata' mata"). Calvino mesmo chega a questionar os "literalistas" quando combate os anabatistas no IV livro das Institutas.
Porém, no fundamentalismo a Palavra de Deus é uma questão de letra. Para estes a Bíblia só pode ser a revelação perfeita de Deus se for isenta de equívocos ou paradoxos. Por isso privilegiaram o termo "inerrância" sobre "inspiração plena" ou mesmo "infalibilidade". Assim, a Bíblia é autoridade religiosa porque nela não há erro qualquer, de qualquer natureza.
Desta base de "inerrância" é que nasce o conceito de "inspiração verbal". Os autores bíblicos reproduziram o que Deus determinou: não é uma questão de "inspiração" mas algo semelhante a uma espécie de ditado. Os manuscritos originais (e não os fragmentos e cópias mais antigas que dispomos) não tinham erros. Nota-se nesta postura já uma defesa contra a crítica bíblica, pois, como não temos os textos autógrafos dos autores, não se pode verificar o valor desta afirmativa axiomática fundamentalista.
O conceito de inerrância bíblica é, pois, no fundamentalismo, uma questão de fé (um axioma). Mesmo que haja discrepâncias entre os Sinóticos, por exemplo, ao descreverem fatos da vida de Jesus, isso não fere o principio da inerrância, solucionando-se o problema com a idéia da complementação recíproca, onde passagens mais difíceis são interpretadas com a ajuda das mais fáceis e com uma explicação extra-textual.
Mesmo que aqui ou acolá um fundamentalista aceite que existem erros geográficos e gramaticais em um texto, todos concordarão que em duas coisas a Bíblia não erra: nas verdades espirituais e na verdade histórica. Por exemplo: se Jesus citou Jonas como exemplo, Jonas não é um personagem, mas uma figura histórica que verdadeiramente foi engolido por um peixe enorme (Lc. 11:30); se Jesus referiu-se a Caim e Abel, eles foram figuras históricas e não meros personagens de antigas tradições (Lc. 11:51). Na Bíblia não existe mito, lenda, saga, narrativa parabólica (só parábolas). Se a burra de Balaão falou, não podemos ver nisso uma fábula (histórias em que os bichos falam), mas fato histórico; a questão, por exemplo, da esposa de Caim, soluciona-se dizendo que ele casou com uma sobrinha, ou irmã, ou filha (ainda que a Bíblia seja contra o incesto); em Mt. Judas se enforcou, em At. jogou-se de um princípio, apela-se, aqui, para a complementação recíproca, no estilo: Judas se enforcou perto de um precipício, caiu (não se sabe como - galho partido?) e seu abdome se cortou na queda; etc.
Mas o literalismo fundamentalista aceita por vezes a alegoria como método de interpretação da Bíblia, mas sempre vista como aplicações figurativas (por exemplo, Cantares de Salomão - onde, esposo e esposa devem ser interpretados como figuras de Cristo e da Igreja; ou mesmo Sara e Hagar, em Gálatas, figuras do eleito para a salvação e do eleito para a perdição). Mesmo nestes casos a alegoria é vista como uma "aplicação".
Mas o fundamentalismo aplicará literalismo e subjetividade conforme o princípio das fundamentais. Note-se: se a Bíblia diz que Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo descansou, verdadeiramente foram dias de 24 horas cada, mesmo que no primeiro dia não houvesse distinção entre noite e dia e os luminares só tivessem sido criados no quarto dia. Veja-se bem: os verbos no texto estão no modo indicativo, ou seja, indicam e não determinam. Porém, quando Jesus diz ao moço rico: Vai, vende tudo que tens, depois vem e me segue e terás um lugar no Reino, este é um texto alegórico e deve ser interpretado. Ou seja, não é para os ricos venderem as suas propriedades, mas para colocarem o Reino em primeiro, e não as suas posses (embora o texto nada fale sobre isso). Entretanto o verbo aqui é um imperativo e não um indicativo. Imperativo é uma ordem. Ordens devem ser cumpridas. Em resumo: o fundamentalismo, quando lhe interessa, trata o indicativo como imperativo e o imperativo como indicativo.
A Escritura deve ser a prova de que a dogmática está certa (ou seja, a Bíblia serve, somente, para justificar e provar o que diz a teologia dogmática). Teologia seria, por isso mesmo, uma repetição sistemática. Para isso elegeram as cartas paulinas como princípio e secundarizaram os evangelhos.
No fundamentalismo teologia e apologética se confundem, sendo, para alguns, uma e a mesma coisa.
Aplicando-se isso ao senso comum (ou este àquilo) tem-se uma espécie de ideologia e não de teologia (não é sem razão que nos EUA o fundamentalismo está ligado aos republicanos e às suas teses reacionárias).
O fundamentalismo é marcadamente ideológico, visto que ele não manifesta uma metodologia ou um princípio hermenêutico, mas uma mentalidade que o torna doutrinariamente rígido, inflexível, bélico: uma espécie de "racismo" teológico. Neste racismo não há lugar para o amor, mas para o ódio teológico e sistemático.
O fundamentalismo é eticamente legalista e, por isso, heteronômico. Conseqüência disso é um afastamento da sociedade, de suas realidades culturais, de suas idéias: "demonologização" daquilo que não lhe é semelhante (narcisismo ético e teológico).
O mundo fundamentalista é séria e irreversivelmente hermético: não há lugar para a criatividade, a novidade, a imaginação, visto que tudo já está decidido e predeterminado (quer na história, quer na prática do indivíduo, pelo legalismo que dita o modo de proceder). A pergunta pelo que e o como fazer é central na ética fundamentalista.
O fundamentalista é social e politicamente reacionário: sua atitude é, de um lado negativista, visto que julga que o mundo caminha para a desgraça, o caos e a destruição final (quialismo), assim, nada há que se possa fazer para mudar isto, daí a atitude passiva em relação à questão social e política. Deus, na Bíblia, já determinou a condenação deste mundo que caminha para desgraças maiores e cumulativas, assim, tentar mudar isso é como lutar contra a vontade de Deus.
A cosmovisão fundamentalista é dicotomista: matéria oposta ao espírito. Assim corpo X alma, espiritual X social, teologia X filosofia estão em contraste irreversível e insuperável. Assim, não existe diálogo com a contemporaneidade, mas relação bélica.
A cristologia fundamentalista é semi-docética: enfatiza e supervaloriza a divindade de Jesus e olha com sérias desconfianças qualquer cristologia que parta da humanidade de Jesus. É semi-docético, por que faz de Jesus um Deus que habitou em um corpo humano, meramente, negando qualquer kenosis (termo retirado de Fil. 2:7 que deu lugar a uma cristologia chamada kenótica que afirma que Deus em Cristo estava limitado, por exemplo, dos atributos externos de Deus: onipresença, onipotência, onisciência, a glória divina, dentre outros).
O fundamentalismo é notoriamente a-histórico (visto que a verdade é universal e a-temporal), o que faz do mesmo algo meramente ideológico.
Embora esteja dentro das diferentes igrejas, ele não se desenvolve eclesiasticamente, mas ideologicamente, por meio de grupos e organizações de fora da Igreja, organizadas e dirigidas por eles para criar métodos e meios de propagarem-se nas igrejas.
Assemelham-se aos escribas e fariseus dos tempos de Jesus que, em nome da sã doutrina, colocaram para fora o seu ódio e mataram Jesus, pretextando piedade e o culto de Deus. Não toleram atitudes como as de Jesus, baseadas na liberdade, na criatividade, na crítica religiosa e doutrinária, na liberdade ética e não legalista.
Rev. Prof. Carlos Alberto Chaves Fernandes
Professor de Introdução e Análise do Novo Testamento e
Professor de Teologia do Novo Testamento do
Seminário Teológico Presbiteriano do Rio de Janeiro
3 comentários:
Verdade o Fundamentalismo exclue as pessoas e muitas verdades, sem falar que a interpretação fundamentalista da bíblia é manca...
Esta pode ser considerada uma análise do fundamentalismo do ponto de vista neo-ortodoxo?
nem todos que se opõem ao fundamentalismo, são necessáriamente neo-ortodoxos.
e nem tudo que é fundamental pode ser classificado como fundamentalismo.
Postar um comentário