Mas a Escritura nos humilha ainda mais e, no entanto, ao mesmo tempo, também nos exalta. Ora, além de vedar que se glorie nas obras, visto que são dádivas graciosas de Deus, concomitantemente ensina que elas estão sempre sujas de certas poluições; de sorte que, se forem examinadas de conformidade com o padrão de seu juízo, não podem satisfazer a Deus. Mas, para que não nos desfaleça o bom ânimo, a mesma Escritura declara também que elas são agradáveis a Deus, porque ele as apóia. Mas ainda que um pouco diferentemente de nós fala Agostinho, contudo, em substância se verificará que suas palavras não se desafinam das de Bonifácio, o qual, depois de comparar entre si dois homens, supondo que um fosse de vida mui santa e perfeita, e que o outro, também de vida boa e honesta, porém não tão perfeito como o outro, por fim conclui que o que parece não ser tão perfeito como o outro, pela retidão de sua fé em Deus pela qual vive e segundo a qual se acusa de todos seus pecados, louva a Deus em todas suas obras boas, atribuindo-se a si mesmo a ignomínia e a Deus, a honra, e recebendo dele a remissão dos pecados, e o anseio de fazer bem suas obras, quando chega a hora de deixar esta vida será recebido em companhia de Cristo. Por quê, senão graças à fé, a qual, embora a ninguém salva sem as obras (pois ela é uma fé não réproba, que opera por amor), entretanto, por meio dela os pecados são também perdoados, pois que o justo vive da fé, mas sem elas as obras que parecem boas a pecados se convertem? Aqui, sem dúvida, ele está a confessar, não obscuramente, o que tanto temos discutido: que a justiça das boas obras depende e procede do fato de que Deus as aprova por fazer uso de sua misericórdia e de perdoar as falhas que há nelas.
AS PASSAGENS BÍBLICAS QUE FALAM DE RIQUEZA OU TESOUROS NOS CÉUS NÃO COMPROVAM O MÉRITO ÀS OBRAS
Há outras passagens quase semelhantes às que acabamos de expor, a saber: "Granjeai amigos com as riquezas da injustiça; para que, quando estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos"; "Manda aos ricos deste mundo que não sejam altivos, nem ponham a esperança na incerteza das riquezas, mas em Deus, que abundantemente nos dá todas as coisas para delas usufruirmos; que façam bem, enriqueçam em boas obras, repartam de boa mente, e sejam comunicáveis; que entesourem para si mesmos um bom fundamento para o futuro, para que possam alcançar a vida eterna" [1 Tm 6.17-19]. Ora, as boas obras estão sendo comparadas com as riquezas que haveremos de usufruir na bem-aventurança da vida eterna.
(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 3, pp. 295-296)
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